Aumenta violência contra a mulher negra

Por Mario Osava, da IPS – 

Rio de Janeiro, Brasil, 25/11/2016 – Quatro meses no hospital e várias cirurgias salvaram a vida de Maria da Penha Fernandes, mas os danos do tiro de escopeta a deixaram paraplégica aos 37 anos. Quando voltou para casa, o marido tentou eletrocutá-la durante o banho. Não havia dúvidas, o autor do primeiro atentado, o tiro pelas costas enquanto dormia numa noite de maio de 1983, também era o marido, que atribuiu o crime a assaltantes.

Mulheres negras participaram da Marcha pela Consciência Negra, no dia 20 de novembro, em São Paulo. A violência por razões de gênero cresce de maneira especial entre as afrodescendentes no Brasil, apesar de mais leis contra esse crime. Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

Mulheres negras participaram da Marcha pela Consciência Negra, no dia 20 de novembro, em São Paulo. A violência por razões de gênero cresce de maneira especial entre as afrodescendentes no Brasil, apesar de mais leis contra esse crime. Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

 

Ela deixou a casa protegida por uma decisão judicial que lhe garantia a guarda das três filhas que teve com o agressor, e iniciou, de sua cadeira de rodas, uma batalha de 19 anos na justiça para que o homicídio frustrado não ficasse impune. Depois de duas condenações que os advogados do réu conseguiram anular, na década de 1990, ela recorreu à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que em 2001 divulgou uma sentença acusando o Estado brasileiro de omissão e recomendando um julgamento definitivo e medidas para eliminar violências contra a mulher.

Finalmente, em 2002, o homicida em grau de frustração foi condenado a dez anos de prisão, mais conseguiu a liberdade após cumprir apenas dois anos. O principal triunfo de Maria da Penha, uma biofarmacêutica de Fortaleza, no Ceará, foi inspirar uma lei que leva seu nome, aprovada pelo Congresso em 2006, contra a violência de gênero e que pune exemplarmente os agressores de mulheres.

No entanto, essas agressões continuaram aumentando nas estatísticas brasileiras, embora em ritmo menor. Entre 1980 e 2006, o número de mulheres assassinadas cresceu 7,6% ao ano, enquanto, de 2006 a 2013, esse índice baixou para 2,6%, segundo o Mapa da Violência, elaborado por Julio Jacobo Waiselfisz, coordenador de estudos sobre esse tema na brasileira Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso).

A Lei Maria da Penha, as delegacias da mulher e outros instrumentos “são eficazes contra a violência, mas seus recursos são insuficientes”, argumentou à IPS a secretária executiva da Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Reprodutivos, Clair Castilhos Coelho. Mas há uma realidade importante no Brasil, com seus 205 milhões  de habitantes: os resultados díspares segundo a cor da pele.

“Para as mulheres negras, a situação se agravou”, apontou à IPS a médica Jurema Werneck, uma das coordenadoras da organização Criola, que promove os direitos das afrodescendentes. Em dez anos, os assassinatos de mulheres negras por razões de gênero aumentaram 54,2%, chegando a 2.875 em 2013, enquanto entre as brancas houve redução de 9,8%, de um total de 1.747, em 2003, para 1.576, em 2013, segundo o Mapa da Violência.

“O racismo explica esse contraste. Os mecanismos de combate à violência não protegem a vida de todos igualmente”, afirmou Werneck. “A Lei Maria da Penha estabelece que primeiro deve haver uma denúncia à polícia para então chegar aos órgãos judiciais, e sabe-se que a polícia não protege a mulher negra”, acrescentou.

Manifestantes pedem a aplicação plena da Lei Maria da Penha, em agosto, no aniversário de dez anos da lei contra a violência machista no Brasil. Um dos cartazes dizia: “Quando você se cala, a violência fala mais alto”. Foto: Tony Winston/Agência Brasil

Manifestantes pedem a aplicação plena da Lei Maria da Penha, em agosto, no aniversário de dez anos da lei contra a violência machista no Brasil. Um dos cartazes dizia: “Quando você se cala, a violência fala mais alto”. Foto: Tony Winston/Agência Brasil

 

Segundo Werneck, “o obstáculo é o racismo. Sem reconhecê-lo, as políticas públicas não serão adequadas às necessidades da mulher negra. É necessário enfrentar o racismo, preparar os funcionários, sejam policiais ou gestores, a nos atender como seres humanos”. Uma aplicação mais adequada dessa lei seria levar as denúncias diretamente ao Ministério Público e à Defensoria Pública, o que exige mais promotores e defensores, em lugar de ir à polícia, como está ocorrendo em alguns bairros da cidade de São Paulo, opinou.

Além disso, pontuou que é preciso combater o “racismo institucional”, que contamina muitos órgãos policiais, por exemplo, e “uma ação junto à sociedade para valorizar a mulher negra”, sempre marginalizada na história do Brasil. Outra conquista feminina foi a aprovação, em março de 2015, da lei que pune como “crime hediondo”, com agravamento das penas, o feminicídio, definido como o assassinato da mulher em razão de seu gênero.

Assim, o Brasil se converteu no 16º país latino-americano a contar com uma lei contra o feminicídio, um país que o Mapa da Violência situa em sétimo lugar em um ranking internacional e onde, segundo dados oficiais divulgados ao ser aprovada a lei, morrem, em média, cerca de 15 mulheres por dia em razão de gênero.

Mas a violência contra as mulheres, que tem em 25 de novembro o Dia Internacional por sua eliminação e que dá lugar a 16 dias de ativismo contra o flagelo machista, compreende outras formas de agressão que afetam a população feminina em sua vida cotidiana. No Brasil, os homicídios de homens representam 92% do total, que vai se aproximando de 60 mil ao ano, número que só encontra cifras semelhantes em situações de guerra intensa. Mas em outras violências como agressões físicas, psicológicas e econômicas, violações sexuais e abandono, as vítimas femininas costumam ser maioria.

No Sistema Único de Saúde (SUS) foram atendidas, em 2014, no total, 147.691 mulheres que sofreram algum tipo de violência, o dobro dos homens. Isso corresponde a 405 mulheres necessitando de atenção médica a cada dia por causa de agressões. A última Pesquisa Nacional de Saúde, realizada pelo Ministério da Saúde e pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) a cada cinco anos, revela que 2,4 milhões de mulheres foram vítimas de agressões praticadas por alguém que conhecem, contra 1,3 milhão de homens.

Em termos de violações sexuais, o Anuário Brasileiro de Segurança Pública registrou 47.646 casos no país, 6,7% menos do que no ano anterior. Mas a redução, baseada em registros, não indica uma tendência porque especialistas acreditam que dois terços, ou até 90%, dos casos não são denunciados. “A violência contra mulheres pode estar aumentando devido ao novo protagonismo das mulheres, antes submissas no lar, sofrendo em silêncio. Quebrando o velho paradigma, com as mulheres conquistando direitos, trabalhando, votando e denunciando, os opressores reagem com mais agressões”, explicou Castilhos.

Também há aumento das denúncias, produto das conquistas femininas, como as leis Maria da Penha e contra o feminicídio, e inclusive de regras que obrigam a informar sobre essas violências como fatos de saúde pública, ressaltou Castilhos. Em sua opinião, “a maior violência contra uma mulher nos últimos anos foi a destituição de Dilma Rousseff, presidente de 1º de janeiro de 2011 a 31 de agosto de 2016, sem a justificativa de um crime comprovado, por um parlamento onde a maioria de seus membros é acusada de crimes eleitorais e de corrupção”.

O clima político gerado pelo novo governo, do presidente Michel Temer, “abre espaço para mais violência contra mulheres, por seu caráter misógino”, sem mulheres à frente de um ministério e com propostas que anulam o empoderamento anterior das mulheres, enfatizou Castilhos. Envolverde/IPS

*Este artigo é parte da cobertura da IPS por ocasião do Dia Internacional da Eliminação da Violência Contra a Mulher, celebrado em 25 de novembro.

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Mario Osava

El premiado Chizuo Osava, más conocido como Mario Osava, es corresponsal de IPS desde 1978 y encargado de la corresponsalía en Brasil desde 1980. Cubrió hechos y procesos en todas partes de ese país y últimamente se dedica a rastrear los efectos de los grandes proyectos de infraestructura que reflejan opciones de desarrollo y de integración en América Latina. Es miembro de consejos o asambleas de socios de varias organizaciones no gubernamentales, como el Instituto Brasileño de Análisis Sociales y Económicos (Ibase), el Instituto Fazer Brasil y la Agencia de Noticias de los Derechos de la Infancia (ANDI). Aunque tomó algunos cursos de periodismo en 1964 y 1965, y de filosofía en 1967, él se considera un autodidacto formado a través de lecturas, militancia política y la experiencia de haber residido en varios países de diferentes continentes. Empezó a trabajar en IPS en 1978, en Lisboa, donde escribió también para la edición portuguesa de Cuadernos del Tercer Mundo. De vuelta en Brasil, estuvo algunos meses en el diario O Globo, de Río de Janeiro, en 1980, antes de asumir la corresponsalía de IPS. También se desempeñó como bancario, promotor de desarrollo comunitario en "favelas" (tugurios) de São Paulo, docente de cursos para el ingreso a la universidad en su país, asistente de producción de filmes en Portugal y asesor partidario en Angola. Síguelo en Twitter.

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